A Partida – Capítulo 53

A manhã chegou sem pressa, tingida por uma luz dourada e branda que atravessava as cortinas da casa. Clara caminhava devagar pelos cômodos, tocando com a ponta dos dedos os cantos dos móveis, as bordas das portas, os vãos silenciosos onde antes viviam sussurros. Cada passo era uma despedida gentil, sem dor, como quem agradece por tudo o que foi revelado.

No sótão, o ar ainda carregava o perfume sutil da madeira aquecida pelo sol. O caderno que a acompanhara em tantas descobertas repousava agora sobre a escrivaninha antiga, a mesma onde tudo começara. As páginas, antes em branco ou rabiscadas por enigmas, estavam completas. Não porque continham todas as respostas, mas porque continham a verdade do caminho percorrido.

Clara passou os dedos pela capa, depois se afastou lentamente. Ao lado, o espelho que antes mostrava ecos do passado agora refletia apenas o presente. Clara estava ali, inteira, sem fantasmas, sem lacunas. Sorriu com serenidade. A moldura que antes estivera vazia agora guardava a pintura viva, aquela que unira dois tempos, duas almas, dois nomes.

Antes de descer, ela olhou pela janela. Lá fora, a velha árvore que tantas vezes vira seca, retorcida, silenciosa, agora florescia. Pequenas folhas verdes brotavam entre os galhos e, entre elas, despontavam flores claras, tímidas, mas firmes. Não havia som. Nenhum vento soprava. E ainda assim, tudo ali parecia cantar. Era a casa dizendo adeus.

Ao alcançar a porta da frente, Clara passou a mão pela maçaneta com um gesto lento, como quem reconhece o fim de um ciclo. Nenhuma voz a deteve. Nenhuma presença pediu que ficasse. O silêncio que a acompanhava não era vazio. Era completude.

Ela atravessou o umbral e saiu para a rua. Ninguém a viu.

Mas quem passou pela casa naquele dia notou algo diferente. Os vizinhos, distraídos com seus afazeres, pararam por um momento, olhando para a fachada familiar. A cor parecia mais viva. As janelas mais abertas. As sombras mais suaves. Alguns disseram que era a luz do dia. Outros juraram que ouviram um leve suspiro vindo das paredes.

E alguém, ao passar de bicicleta, comentou em voz baixa, quase como se fosse segredo:

— Parece que a casa voltou a respirar.

E assim, sem alarde, Clara partiu. E a casa permaneceu. Viva. Em paz. Completa.

A Partida – Capítulo 53