✦ A Guardiã do Rio – Capítulo 1

Na beira do Rio Estelar, onde a água sussurrava antigos segredos às pedras e as libélulas dançavam entre juncos luminosos, vivia Maíra, uma mulher de cabelos tão brancos quanto a espuma das corredeiras e olhos que refletiam o curso do rio mesmo em noites sem lua. Diziam que nascera durante a subida das grandes águas, quando a natureza inteira havia silenciado para ouvir o primeiro choro da menina. Desde então, ela e o rio pareciam respirar no mesmo ritmo.

Maíra morava em uma casa de barro e madeira entrelaçada, cujas janelas eram adornadas por sinos de cristal que tocavam sozinhos, mesmo sem vento. Ninguém sabia ao certo quantos anos ela tinha, mas todos os que vinham de longe  curandeiros, viajantes, anciãos partiam convencidos de que ela carregava algo mais antigo que o tempo.

Todas as manhãs, Maíra caminhava pelas margens, tocando a água com as pontas dos dedos. Em troca, o rio lhe contava histórias. Era assim que ela sabia quando as lontras haviam encontrado um novo ninho ou quando as raízes de uma árvore estavam sedentas. Mas naquela manhã, a correnteza parecia inquieta. Um silêncio pesado pairava sobre as águas. Nenhuma ave cantava, nenhum peixe saltava.

Maíra ajoelhou-se na margem e mergulhou as mãos. A água estava morna demais para aquela época do ano. Seus olhos se fecharam, e ela sussurrou palavras antigas, herdadas de suas ancestrais, invocando o espírito do rio.

A resposta veio como um sopro gelado em sua nuca.

“Ele chegou…”

Maíra se levantou devagar, os olhos fixos na mata do outro lado. Era ali que começava a floresta de Nharu, onde poucos se aventuravam e onde, dizia a lenda, os caminhos mudavam para quem não era bem-vindo. Ela sabia que não estava mais sozinha. Alguém, ou algo  havia cruzado a fronteira da floresta. E não era amigo do rio.

Naquela noite, acendeu sete velas ao redor de sua casa, cada uma em nome de um espírito guardião. Espalhou folhas secas de jenipapo nos umbrais e sussurrou orações ao luar. Mas antes que pudesse terminar o último verso, um som cortou a escuridão. Era baixo, quase humano, mas vinha com a densidade das pedras que afundam. Uma presença a observava.

No dia seguinte, encontrou pegadas na lama. Eram finas demais para pés humanos, e fundas demais para animais. Vinham da mata, passavam rente à sua porta, e voltavam à floresta. Como se algo tivesse ido até ela apenas para olhar.

Maíra soube, então, que a ameaça havia despertado. Não era um inimigo de carne e osso, mas algo ancestral, adormecido há séculos nas entranhas da floresta, e agora atraído pela energia do rio. Ela precisaria buscar o espelho do tempo, escondido sob o Véu da Névoa, e reunir os quatro artefatos que mantinham o equilíbrio das águas.

Mas para isso, teria de revisitar promessas antigas. E despertar aliados que há muito haviam se recolhido ao silêncio.

O rio não podia lutar sozinho. E Maíra, a guardiã, estava pronta para proteger o que corria não apenas entre as pedras, mas dentro dela.

✦ A Guardiã do Rio – Capítulo 1