✦ Cartas Para Ana – Capítulo 1

O Velho Porão e a Caixa de Cartas

A chuva caía fina sobre o telhado da antiga casa de madeira, como se o céu também tivesse algo a lamentar. Ana observava a vidraça da sala embaçar lentamente, perdida num silêncio que já durava dias. Desde o funeral da mãe, tudo parecia em suspenso, como se o tempo tivesse recuado alguns passos e se recusasse a avançar.

Era estranho estar de volta ali. Aquela casa, onde passou os primeiros anos da infância, parecia menor do que lembrava. Os móveis cobertos por lençóis brancos, o cheiro de guardado nos armários, as fotografias em preto e branco nas paredes — tudo parecia ter congelado no tempo. Inclusive ela.

Na tarde do terceiro dia, movida mais pela necessidade de se distrair do que por qualquer propósito claro, Ana decidiu descer ao porão. A luz fraca da lâmpada pendurada no teto tremulava como um coração inseguro. Estava tudo coberto de poeira e silêncio, exceto por um canto, onde repousava um baú antigo, de madeira escura, com as ferragens enferrujadas pelo tempo.

Curiosa, ajoelhou-se diante dele. Teve de forçar a tampa com as duas mãos, ouvindo o estalo seco das dobradiças cedendo após anos de repouso. Dentro, havia livros, algumas anotações, um casaco velho do avô… e, no fundo, cuidadosamente envolta por um pano de linho bege, uma caixa retangular de madeira clara, selada por uma fita azul desbotada.

Ana não soube explicar o que sentiu ao tocá-la. Era como se algo muito antigo a chamasse — uma vibração quase imperceptível, mas inegável. Ao desamarrar a fita e abrir a tampa, encontrou dezenas de cartas organizadas por ordem cronológica, todas escritas à mão, em papel amarelado. O primeiro envelope datava de 1979, o último de 1994.

E todas, sem exceção, eram endereçadas a Ana.

Seus dedos tremeram. Aquilo não fazia sentido. Ela só nascera em 1995.

Retirou a primeira carta do envelope, leu o nome do remetente: Matteo Rossi. Um nome que não lhe era familiar. Respirou fundo antes de desdobrar o papel. A caligrafia era firme, elegante, carregada de emoção. Leu as primeiras linhas:

“Ana,
Não sei quando você lerá estas palavras. Talvez nunca. Talvez muito depois que eu já não estiver mais aqui. Mas escrevo mesmo assim, porque o amor que sinto por você atravessa qualquer silêncio. Até o do tempo.”

A mão dela tremia mais agora. Sentou-se no chão frio do porão, com a caixa no colo e o coração descompassado. Um amor antes dela? Um homem que escrevera para ela antes de sua existência? Quem era Matteo? O que ele tinha com sua mãe? E por que, afinal, aquelas cartas estavam escondidas ali, esperando por ela como se sempre soubessem que um dia ela voltaria?

O porão, úmido e silencioso, tornava-se o portal de algo muito maior. Ana soube, com uma certeza que só se tem em momentos assim, que aquela caixa mudaria sua vida. Talvez até a explicasse.

Mas o que ela ainda não sabia era que, ao abrir a primeira carta, havia também aberto as portas de um passado que esperava ser lembrado — e de um futuro que, por mais improvável que parecesse, já tinha começado a se escrever.

Cartas Para Ana – Capítulo 1