✦ O Espelho do Tempo – Capítulo 2

Na manhã seguinte ao silêncio do rio, Maíra preparou sua sacola de couro com folhas secas de anador, um pequeno pote com água da fonte alta e uma pedra azul que costumava brilhar em suas mãos quando o perigo se aproximava. Era chegada a hora de cruzar o Véu da Névoa, uma antiga passagem oculta onde o tempo se dobrava como tecido ao vento.

O caminho até lá não seguia trilhas comuns. Maíra sabia que deveria caminhar em silêncio absoluto por entre as árvores do leste, onde os galhos formavam túneis naturais e o ar ficava denso como o das madrugadas. Em sua juventude, havia passado por ali com sua avó, que a ensinara a reconhecer os pontos onde a névoa mudava de cor. Segundo ela, ali começavam as fronteiras do que já foi.

Ao meio-dia, quando o sol se partia em reflexos dourados sobre as folhas, Maíra chegou ao limite do conhecido. Diante dela, erguia-se o Véu da Névoa: uma cortina espessa de vapores azulados, pairando entre duas pedras como se respirasse. Tocá-la exigia reverência. Antes de atravessar, a guardiã se ajoelhou e molhou os dedos na água da fonte. Fez um círculo no chão e sussurrou três nomes esquecidos.

Ao cruzar o véu, a luz mudou. O ar tornou-se morno e perfumado, como o de um dia antigo, e o som do rio ecoava ali de maneira diferente, como se fluísse para trás. As árvores estavam cobertas por musgos luminosos, e cada passo de Maíra fazia brotar pequenas flores que sumiam logo em seguida. A passagem não era apenas física, era também um mergulho na memória do mundo.

No centro daquela clareira suspensa no tempo, havia um pedestal de pedra coberto por líquen prateado. Em cima dele, o espelho. Não refletia imagem alguma. Sua superfície era leitosa, como a água da chuva que se guarda em tigela de barro.

Maíra se aproximou e recitou as palavras antigas.

Águas que viram o ontem,
Rios que sabem do que foi,
Mostrai-me o instante escondido,
Onde tudo começou a se quebrar.

O espelho tremeluziu como superfície tocada pelo vento. Aos poucos, formas surgiram: o rio ainda jovem, seus braços serpenteando por entre vales, animais bebendo de suas margens, crianças correndo pela mata. Então, a imagem mudou. Um clarão cortou o céu como um cometa sem nome. Uma sombra desceu sobre a floresta. Mas não era uma criatura. Era uma intenção. Um desejo escuro lançado contra o equilíbrio das águas. Algo que queria romper o ciclo para moldá-lo à sua vontade.

Maíra viu quando uma árvore foi arrancada sem mãos. Viu os peixes subirem à tona, imóveis. Viu o olhar da floresta se entristecer.

E então, o espelho silenciou. A imagem sumiu. Tudo voltou à névoa branca.

A anciã tocou o pedestal. Entendeu que a ameaça viera de fora, mas havia sido despertada por algo de dentro. Um desequilíbrio. Um esquecimento. Alguém havia feito uma escolha errada. E agora cabia a ela descobrir quem, e por quê.

Com o espelho envolto em um tecido de linho, Maíra voltou pelo mesmo caminho. A névoa a deixou passar, mais densa que antes. O rio a esperava. E ele precisava mais do que proteção. Precisava de lembrança, de cuidado, de verdade.

A primeira resposta havia sido dada. Mas as perguntas, essas, estavam apenas começando a se revelar.

✦ O Espelho do Tempo – Capítulo 2