O Parafuso Que Faltava – Capítulo 43

No salão leste do palácio, onde o sol da manhã entrava como um convidado dourado, a Rainha estava ajoelhada diante de um amontoado de tábuas, parafusos e promessas de um móvel novo. Vestia um short que mal lembrava os protocolos reais, uma camiseta antiga amarrada na cintura e um olhar determinado — daqueles que não aceitam derrota, nem mesmo frente a uma chave Allen desobediente.

Os dois gatos brincavam ao redor dela, como se os parafusos soltos fossem novas presas em um safári de nobres felinos. Já os dois cachorros corriam atrás um do outro, atravessando o salão em velocidade que faria inveja aos cavaleiros do Reino de Veramor. De tempos em tempos, passavam por ela, derrubando manual, empurrando a régua e lambendo a ponta do nariz da soberana como quem dizia: “Desiste disso, e vem brincar”.

Mas a Rainha era obstinada. Ou talvez soubesse exatamente o efeito que causava ao se curvar sobre peças soltas, o cabelo preso de qualquer jeito, a pele dourada pela luz matinal e um leve brilho de esforço no colo.

O Rei entrou naquele instante. Parou. Piscou. Esqueceu por um momento o motivo da visita.

Ela o olhou de lado, com um sorriso enviesado e a sobrancelha erguida.

Veio ajudar ou veio atrapalhar, meu Rei?

Ele se aproximou devagar, como se cada passo fosse parte de um ritual. Ajoelhou-se ao lado dela, pegou um parafuso e o girou nos dedos como quem brinca com a ideia de sorte.

Vim montar o que faltar. Ou te desmontar do cansaço. O que for mais urgente.

Ela fingiu se distrair com a instrução do manual, mas seus olhos espiavam os braços dele, as mãos firmes, a barba por fazer. O cheiro do Rei, feito de suor limpo, café e desejo domesticado, fazia o ar parecer mais denso.

Ele tentou encaixar duas tábuas. Errou. Ela riu.

Talvez você não seja o melhor com móveis. Mas sabe o que encaixa bem, muito bem?

Ele sorriu. Aproximou o rosto, quase tocando o dela.

Você. Em mim. Sempre.

Ela então pegou um parafuso pequeno, colocou na palma da mão dele e murmurou com a voz mais baixa e perigosa de todo o Reino de Veramor:

Se tudo faltar, te parafuso no meu peito. E te prego na memória do meu corpo.

Os cães, alheios à tensão no ar, voltaram correndo, derrubando um banquinho. Um dos gatos subiu no ombro do Rei como se quisesse abençoar o momento. E naquele instante, entre peças que não se encaixavam e corpos que se reconheciam com perfeição, os dois riram, se tocaram e entenderam que o móvel podia esperar.

O amor, não.

O Parafuso Que Faltava – Capítulo 43