O Quarto Trancado – Capítulo 19

“Algumas portas não se abrem com chaves, mas com memórias que insistem em voltar.”

Durante dias, Clara evitara o corredor do andar de baixo. Desde que ouvira passos após tocar a chave de marfim, algo nela dizia que aquela ala da casa guardava mais do que o tempo esquecido, guardava o irreversível.

Mas naquela tarde, ao descer as escadas lentamente, percebeu que a porta trancada, aquela que sempre resistira, estava agora entreaberta, como se a esperasse.

O coração acelerado, a respiração curta. Ela empurrou a porta com a ponta dos dedos.

O que viu a fez recuar instintivamente.

O quarto era amplo, de teto alto, iluminado por uma luz amarelada e suspensa. No centro, uma instalação artística inquietante: dezenas de mãos de cera branca, algumas perfeitas, outras deformadas, estavam penduradas por fios quase invisíveis, flutuando no ar como se tocassem algo que Clara não podia ver.

O silêncio era denso. Um som abafado de gotejar ecoava do canto da sala.

Clara caminhou entre as mãos, cada uma parecendo tensa, como se congelada em meio a um gesto. Algumas estendidas, outras crispadas. Uma, no alto, quase parecia fazer o gesto de um aceno.

E então, uma delas se moveu.

Quase imperceptivelmente. Um dedo se mexeu.

Clara congelou. Aproximou-se com cautela. A mão era mais vívida que as outras. Os detalhes da pele, as linhas, o tom levemente azulado sob a cera translúcida.

De súbito, ela apontou para um espelho pequeno encostado ao chão.

Clara se agachou diante dele. No reflexo, não havia apenas o quarto com as mãos suspensas.

Havia também Elias, em pé atrás dela, observando com olhos que não eram feitos de cera, e nem de tempo.

Ela se virou num sobressalto.

Nada.

O quarto estava vazio. Silencioso.

Mas a mão, agora imóvel outra vez, apontava para a própria Clara.

E pela primeira vez, ela percebeu: algumas daquelas mãos eram réplicas de mãos suas.

Elias não estava apenas refazendo lembranças. Ele as moldava, peça por peça. E Clara estava, ou sempre estivera dentro daquela criação.

O Quarto Trancado – Capítulo 19