O Livro dos Vultos – Capítulo 31

A madrugada caía pesada quando Clara, em busca de um sono que não vinha, decidiu reorganizar os livros da estante do corredor. Os títulos pareciam mudar de lugar sozinhos, como se se recusassem a ser alinhados. Foi então que, sem que ela os tocasse, um volume antigo despencou do alto e caiu aos seus pés com um som surdo, quase sufocado.

A capa era de couro escurecido pelo tempo, sem título. Quando Clara o abriu, encontrou páginas grossas, amareladas, preenchidas por retratos desenhados a carvão. Rostos inacabados: uns sem boca, outros sem olhos, muitos fragmentados como memórias interrompidas. Alguns pareciam quase familiares, mas nenhum completamente reconhecível.

Folheando com cautela, ela parou em uma página onde o rosto incompleto tinha apenas o contorno da cabeça e uma sugestão de olhos, quase apagados. Ao tocar delicadamente o papel, uma transformação sutil aconteceu: dois olhos surgiram no retrato, escuros, vítreos e profundamente tristes. No instante seguinte, uma gota de água escorreu da página.

Clara recuou, atônita. O desenho… chorava.

A lágrima desceu lentamente até o rodapé do papel, onde letras começaram a surgir, como se escritas por dentro da folha:

“Ainda vejo o que Elias viu.”

Ao tocar a página de novo, os olhos do retrato se moveram, fixando-se nos dela. Uma sensação gélida subiu por seus braços até o peito. Aquela figura não era apenas um retrato: era uma presença. Um fragmento de alguém que vira demais e jamais fora ouvido.

Nos retratos seguintes, os traços tremiam como se lutassem para emergir da sombra. Mas apenas aquele rosto chorava. Apenas aquele parecia lembrar.

Fechando o livro com cuidado reverente, Clara compreendeu que ele não era feito para ser lido, mas para ser sentido. E que os vultos ali não pediam compreensão, pediam libertação.

E talvez, ao desenhar olhos naquele mundo esquecido, ela estivesse finalmente começando a vê-los como Elias os viu:
fragmentos de almas que o tempo se recusou a apagar.

O Livro dos Vultos – Capítulo 31