O Beijo que Nunca Aconteceu

A noite cai envolta em névoa, e a casa inteira parece mergulhar em uma respiração lenta e profunda. Clara sente o tempo se dobrar ao redor dela, como se o presente e o passado se tocassem por um breve instante. O diário de Elias permanece aberto sobre a mesa, as palavras parecendo pulsar sob a luz trêmula da lamparina.

Ela fecha os olhos por um momento, buscando silêncio dentro de si. Mas o silêncio não vem. Em seu lugar, surge uma presença suave, quase imperceptível, que faz o ar mudar de temperatura. É como se alguém estivesse ali, muito próximo, observando-a com ternura.

Clara sente o toque do vento sobre o rosto e reconhece nele algo familiar. Há calor, há cuidado, há lembrança. O espaço entre o visível e o invisível se torna estreito, e ela quase pode ouvir o som de uma respiração próxima da sua. Um arrepio percorre-lhe a pele.

O tempo parece suspenso. O quarto desaparece. Tudo se torna um campo de luz e sombra onde apenas dois corações se encontram. Clara sente que se inclina para frente, atraída por uma força silenciosa. E então o instante acontece — não o beijo em si, mas o que vive antes dele. A pausa carregada de desejo, o reconhecimento profundo, a certeza de que duas almas se encontram antes dos corpos se tocarem.

O beijo não acontece, mas a alma o sente. É real e impossível ao mesmo tempo. Há um sabor de eternidade pairando no ar, uma lembrança que o corpo não viveu, mas o espírito nunca esqueceu.

Quando Clara abre os olhos, está sozinha. O vento cessou, o quarto repousa em silêncio, e o diário de Elias está fechado sobre a mesa. Ainda assim, seus lábios conservam um vestígio de calor, como se algo sagrado tivesse passado por ela.

Naquela noite, Clara compreende que o amor é feito também dos gestos que nunca se realizam, das promessas que só a alma cumpre. E adormece com a sensação de ter sido beijada por alguém que habita o outro lado da lembrança.