O Quadro Incompleto – Capítulo 5

A poeira suspensa no ar tremeluzia como cinzas douradas sob a luz tímida que invadia o sótão. Clara, ainda com o diário de bordas azuis fresco na memória, voltou a explorar o espaço com o olhar atento de quem já não buscava objetos — mas mensagens ocultas.

Foi então que viu.

Num canto menos iluminado, atrás de uma prateleira tombada, erguia-se um cavalete encoberto por um lençol espesso, quase como um véu cerimonial. Diferente dos panos que cobriam outros móveis, este parecia ter sido posto com um cuidado quase ritual. Clara hesitou por um instante. Então, respirou fundo e puxou o tecido.

Debaixo dele, estava o quadro.

A tela era grande, mas não preenchida. No centro, surgia a figura já familiar da mão estendida, mas não era igual às anteriores. Esta mão emergia de uma espiral de névoa, sombras e riscos confusos, como se fosse puxada de outro plano. Havia algo perturbador naquela composição, um magnetismo silencioso que prendia o olhar.

Clara se aproximou, sem perceber que prendia a respiração.

Os traços eram incompletos, esboços quase invisíveis delineando uma expressão oculta, como se um rosto estivesse prestes a se formar atrás da névoa, mas resistisse à revelação. O uso das sombras parecia desafiar a lógica: onde a luz deveria suavizar, ela obscurecia; onde deveria haver profundidade, havia vazio.

Por um momento, Clara sentiu que o quadro a olhava de volta. Não de forma literal, mas como se fosse um reflexo obscuro de algo que ela mesma guardava sem saber.

Ficou ali por tempo demais. Quando tentou desviar o olhar, sentiu um arrepio gelado correr-lhe a espinha, como se tivesse sido tocada por algo invisível e antigo.

Recuou instintivamente. E só então percebeu um detalhe que lhe escapara: na parte inferior direita da tela, um traço inacabado indicava o início de outra mão. Não uma que se estendia, mas que se recolhia. Como se o contato tivesse sido recusado. Ou temido.

Clara olhou para suas próprias mãos. Sentia-as trêmulas. A pergunta que crescia dentro dela já não era se Elias enlouquecera, mas se ele havia, de alguma forma, tocado algo que escapava às fronteiras do mundo comum. E se ela agora, sem querer, começava a fazer o mesmo.

O Quadro Incompleto – Capítulo 5